Isto era assim, e funcionou como um modelo de referência , uma ética de integração como formalização da técnica de saberes, gerando idéia afirmada de progresso e teleologia com divisões crescentes desta autoconfiança quanto mais prosseguisse a noção de desenvolvimento do mundo.
Poderíamos sugerir que assistimos mesmo a um conflito, de um lado, entre a antiga funcionalização que insiste na padronização fundamental, e de outro, as comunidades que se estruturam sob a regra da diferença. Seres humanos compartilham normas comuns tácitas e explícitas e dividem modos de viver e crenças – embora divirjam em ritos e valores que compartilhem, mas estão seguidamente produzindo espaços para ampliar rotinas que mudam suas atuações e compartilham novos espaços, que por sua vez podem mudar a dimensão de rotinas em qualquer lugar. Há um desejo de redefinir sua própria historicidade. A perplexidade convoca a explicar o que a princípio parecia ser desvio de uma trajetória.
A pergunta que assomou nesta situação, que Anthony Giddens iria chamar muito apropriadamente de Alta Modernidade[2] , foi a seguinte: teria havido a situação filogenética ideal a partir de uma moralidade completamente heterônoma, onde uma representação coletiva e uma solidariedade se fizessem pautar pelo tempo como representação de uma natureza sincrônica, como quer a visão sistêmica das ciências sociais?
Ou então apresentada filosóficamente, como ontogênese de uma subjetividade transcendental da idéia a priori, mesmo com as retificações éticas posteriores feitas no século XIX?
Se compreendermos o mundo como uma construção que é dada pela condição de atribuir sentido aos objetos, numa inter-relação que cria e recria situação onde somente a interrogação suscitada pela diferença é capaz de formar possibilidade moral, esta condição se abriu pela redução da ontogênese em filogênese. Uma redução que não seria possível sem o contexto criado pela autopoiese e conflito, ou seja, o movimento de choques entre diferentes para perceberem-se, o reconhecimento e inclusão, onde a atitude natural se desvincula do resultado imediato de sua ação relevante pela tipificação do mundo, formando as primeiras atitudes teóricas. Há um contexto de normas garantidas pela ética que diferencia os sentidos tácitos dos sentidos típicos.
Esta foi a contribuição de Alfred Schutz para uma ciência social fenomenológica construtivista, em toda sua obra e bem explícita em seu mais importante livro.[3] Quanto mais se desenvolvem transmissões geracionais do conhecimento, mais a acumulação do conhecimento típico estratifica e fundamenta o conhecimento tácito,gerando não mais um mundo de reciprocidade difusa, mas mundos de formações contextuais referenciadas por tempos de ação que se dimensionam entre si.
A redução de biografias à sua compreensão individual acompanha a redução sucessiva conjunta de biografias que uma comunidade faz ao ampliar-se quando amplia sua socialização. Pois o paradoxo, é que socialização se dá pela complexa individuação sucessiva que abstrai e ao mesmo tempo constitui a sociedade de um fundo múltiplo que se diferencia pela familiarização. A formação de eventos e ocorrências genéricas encontra agentes que se representam biográficamente e que se produzem segundo seus diferentes tempos como específicos processos históricos.São estes tempos específicos que podem formar tempos sociais em comparação, diferenciação e complementação.
Na Alta Modernidade em que nos encontramos, então, as racionalidades já se percebem dimensionadas em contextos históricos diferentes de representação da sua ocorrência, construindo movimento relacional de redução e transcendência, afastando a condição "a priori" da experiência racional e construindo relações sucessivas de experiência própria mediada.O envolvimento se afasta por tipificações que produzem conhecimento secundário e sucessivo da ação.Estas visões assinalam complexidades e contradições que buscam integração dentro das diferenças de escalas.
O sentimento de pertencimento é dado pelos sentidos de longo alcance entre familiarização, confraternização, associação e civilidade na organização social, que se percebem mediados em contextos de ocorrência com diferentes apresentações e abstratificações de tempo e contextos de ação.Mas o que parecia na linguagem de Giddens se constituir uma impessoalização de sistemas, onde a reflexividade seria dada pela avaliação constante e imediata entre risco e credibilidade,se nos aparece então agora como ampliação de contextos de diferenças e reconhecimentos de presenças em mundos que se representam por oposição diferenciadora. Da heteronomia biográfica de defesa à formação de redes intra-biográficas, inter-biográficas e multi-biográficas, ampliando suas origens e se complementando. Da mera utilidade imediata à construção de conceitos sobre habilidades, medeia uma amplitude de mundos diferenciados que tipificam a relevância de situações específicamente vividas, e cujo processo de viver imediatamente o sentido ou atribuí-lo faz graduação de tipos ideais para compreensão da ação generalizada.A adequação constante faz destes mundos uma comunidade de atores contemporâneos que diariamente procura reconfigurar sua composição de gênero, etnia, classe em dimensão subjetiva da solidariedade.
Discutir onde se formula uma nova subsidiariedade que reconheça diferentes pessoas morais que buscam transformar o anonimato em contextos de representação autonomizada - a partir de inúmeras associações como observamos - parece ser o grande desafio para o período que se abre.
[1] Touraine, Alain(1994) La Societé Pós-Industrielle.Paris, Fayard[2] Giddens, Anthony(1987) The Consequences of Modernity.London: Pluto[3] Schutz, Alfred (1973) The Structures of Life World, compilada e co-escrita postumamente por Thomas Luckmann. Evanston: Nortwestern Press