Contextos de mundificação*

* Versão para artigo de conferência realizada no Colóquio "Fenomenologia do Conhecimento e Antropologia Filosófica". Comemoração dos 80 anos de Ser e Tempo, organização de Ernildo Stein. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica, 2007, Novembro, 23
_______________________________
Gostaria de discutir a questão da formação de uma ética social, de uma noção de estrutura que formaliza e dá sentido a nossa atuação no mundo, e por último o rumo que estas indagações vêm tomando nos últimos anos pelo abalo de nossa percepção de tempo que delimita tanto ética, estrutura e atuação.A partir desta discussão brevemente colocada, investigo então a abertura dos últimos contextos de significação que se interpuseram à nossa ação no mundo, caracterizando já não mais um tempo de ação, mas tempos de ação e novos contextos de mundificação
Se assumirmos a questão da ética tanto como sistêmica e discursiva, tal como ela vem sendo apresentada nos últimos 40 anos, isto é, funcionalizadora de nosso entendimento e organizadora, já agora tipificadora deste entendimento - supondo, é claro, ter seus receptores - vemos que ela precisou mesmo assim percorrer trajetória longa de transmissão inter-geracional em sua necessidade de contexto adaptativo, formalizando a noção de estrutura pela qual nos habituamos a viver, conviver, agir e distribuir papéis sociais e obrigações.O tempo se estruturou também dentro desta lógica de encarar a Natureza como objeto de transformação e os sujeitos como agentes de técnicas que instituíam saberes. A historicidade progressiva distribuiu o tempo social ocupado por estratos dentro de lugares na produção, e deu sentido a uma sociedade identificada com suas instituições sociais e econômicas, legitimando classes sociais assim formadas, que as dominavam.Não me estenderei demasiadamente sobre este percurso, e Alain Touraine foi um autor que melhor percebeu a perfeita sincronia, o tempo social sincrônico, chamando-o de historicidade completa.[1].
Isto era assim, e funcionou como um modelo de referência , uma ética de integração como formalização da técnica de saberes, gerando idéia afirmada de progresso e teleologia com divisões crescentes desta autoconfiança quanto mais prosseguisse a noção de desenvolvimento do mundo.
Tornou-se consenso nos últimos 20 anos dizer que o que temos agora é diferente. Há o mesmo espaço forjado pela solidariedade de memória que funcionaliza e organiza símbolos de padrões de linguagem pelas instituições que se estruturam em nossos convívios, mas a forma como se distribuem entre diversos representantes de sua atuação já diferencia estratos e compreensões por campos que transformam a sociedade. Novamente conforme boa expressão de Touraine, em “uma criação e representação para a sociedade mesma e não para outras finalidades".A sociedade se organiza em diversos mundos.
Poderíamos sugerir que assistimos mesmo a um conflito, de um lado, entre a antiga funcionalização que insiste na padronização fundamental, e de outro, as comunidades que se estruturam sob a regra da diferença. Seres humanos compartilham normas comuns tácitas e explícitas e dividem modos de viver e crenças – embora divirjam em ritos e valores que compartilhem, mas estão seguidamente produzindo espaços para ampliar rotinas que mudam suas atuações e compartilham novos espaços, que por sua vez podem mudar a dimensão de rotinas em qualquer lugar. Há um desejo de redefinir sua própria historicidade. A perplexidade convoca a explicar o que a princípio parecia ser desvio de uma trajetória.
A constituição, desenvolvimento e andamento do anterior movimento teórico perpassaram todas as longas décadas do século XX, e o contexto completamente adaptado de estrutura, tempo e ação, parecia guardar coerência explicável desde a racionalidade elegante a priori no tempo. As Ciências Sociais a contestaram, mas confirmando por outros meios, ao definirem estabilidade de estrutura e sistema. Características de universais evolucionários, que definiram abordagem de sistemas sociais e suas formações de atores progressivos no século XX, acabaram chamados à completa reavaliação.A crise de paradigma e a idéia de construção e desconstrução assomaram dentro do problema sistêmico e discursivo.Contextos se definem sobre contextos anteriores, convivendo com eles no mesmo tempo social - o tempo de ação referencial ao seu sistema incompleto.A abstração de contextos para impessoalização e criação de complexidade abstrata se recontextualiza em outros contextos de abstração, gerando uma comunidade de contextos. Não há mais simplesmente descontextualização da ação e sua generalização como abstração, que conduziam à formação de um saber especificado como forma de tecnologia.
A pergunta que assomou nesta situação, que Anthony Giddens iria chamar muito apropriadamente de Alta Modernidade[2] , foi a seguinte: teria havido a situação filogenética ideal a partir de uma moralidade completamente heterônoma, onde uma representação coletiva e uma solidariedade se fizessem pautar pelo tempo como representação de uma natureza sincrônica, como quer a visão sistêmica das ciências sociais?
Ou então apresentada filosóficamente,  como ontogênese de uma subjetividade transcendental da idéia a priori, mesmo com as retificações éticas posteriores feitas no século XIX?
Ainda que partindo de assunções diferenciadas nas Ciências Sociais ou na Filosofia, há uma semelhança nos procedimentos dedutivos, pois o objeto pressupõe projeção de uma visão cuja linguagem não é a das ciências humanas, dada sua uniformidade, regularidade, imutabilidade, invariabilidade.Esta linguagem passou a ser a das ciências físico-matemáticas, que podem perfeitamente projetar abstração de ocorrências no tempo com características de invariabilidade.Está propensa ao erro quando exposta à lógica de outra ciência que tem seleção, variabilidade, diferenciação, integração e complementação. Portanto coordenações assíncronas.
Se compreendermos o mundo como uma construção que é dada pela condição de atribuir sentido aos objetos, numa inter-relação que cria e recria situação onde somente a interrogação suscitada pela diferença é capaz de formar possibilidade moral, esta condição se abriu pela redução da ontogênese em filogênese. Uma redução que não seria possível sem o contexto criado pela autopoiese e conflito, ou seja, o movimento de choques entre diferentes para perceberem-se, o reconhecimento e inclusão, onde a atitude natural se desvincula do resultado imediato de sua ação relevante pela tipificação do mundo, formando as primeiras atitudes teóricas. Há um contexto de normas garantidas pela ética que diferencia os sentidos tácitos dos sentidos típicos.
Esta foi a contribuição de Alfred Schutz para uma ciência social fenomenológica construtivista, em toda sua obra e bem explícita em seu mais importante livro.
[3] Quanto mais se desenvolvem transmissões geracionais do conhecimento, mais a acumulação do conhecimento típico estratifica e fundamenta o conhecimento tácito,gerando não mais um mundo de reciprocidade difusa, mas mundos de formações contextuais referenciadas por tempos de ação que se dimensionam entre si.
A redução de biografias à sua compreensão individual acompanha a redução sucessiva conjunta de biografias que uma comunidade faz ao ampliar-se quando amplia sua socialização. Pois o paradoxo, é que socialização se dá pela complexa individuação sucessiva que abstrai e ao mesmo tempo constitui a sociedade de um fundo múltiplo que se diferencia pela familiarização. A formação de eventos e ocorrências genéricas encontra agentes que se representam biográficamente e que se produzem segundo seus diferentes tempos como específicos processos históricos.São estes tempos específicos que podem formar tempos sociais em comparação, diferenciação e complementação.

Na Alta Modernidade em que nos encontramos, então, as racionalidades já se percebem dimensionadas em contextos históricos diferentes de representação da sua ocorrência, construindo movimento relacional de redução e transcendência, afastando a condição "a priori" da experiência racional e construindo relações sucessivas de experiência própria mediada.O envolvimento se afasta por tipificações que produzem conhecimento secundário e sucessivo da ação.Estas visões assinalam complexidades e contradições que buscam integração dentro das diferenças de escalas.
O sentimento de pertencimento é dado pelos sentidos de longo alcance entre familiarização, confraternização, associação e civilidade na organização social, que se percebem mediados em contextos de ocorrência com diferentes apresentações e abstratificações de tempo e contextos de ação.Mas o que parecia na linguagem de Giddens se constituir uma impessoalização de sistemas, onde a reflexividade seria dada pela avaliação constante e imediata entre risco e credibilidade,se nos aparece então agora como ampliação de contextos de diferenças e reconhecimentos de presenças em mundos que se representam por oposição diferenciadora. Da heteronomia biográfica de defesa à formação de redes intra-biográficas, inter-biográficas e multi-biográficas, ampliando suas origens e se complementando. Da mera utilidade imediata à construção de conceitos sobre habilidades, medeia uma amplitude de mundos diferenciados que tipificam a relevância de situações específicamente vividas, e cujo processo de viver imediatamente o sentido ou atribuí-lo faz graduação de tipos ideais para compreensão da ação generalizada.A adequação constante faz destes mundos uma comunidade de atores contemporâneos que diariamente procura reconfigurar sua composição de gênero, etnia, classe em dimensão subjetiva da solidariedade.

Discutir onde se formula uma nova subsidiariedade que reconheça diferentes pessoas morais que buscam transformar o anonimato em contextos de representação autonomizada - a partir de inúmeras associações como observamos - parece ser o grande desafio para o período que se abre.


[1] Touraine, Alain(1994) La Societé Pós-Industrielle.Paris, Fayard[2] Giddens, Anthony(1987) The Consequences of Modernity.London: Pluto[3] Schutz, Alfred (1973) The Structures of Life World, compilada e co-escrita postumamente por Thomas Luckmann. Evanston: Nortwestern Press